A ADIAFA DA TI
JÓQUINA
Na
pequena aldeia alentejana, a vida corria no seu ritmo normal. Os trabalhos
campestres eram mal remunerados, muita gente trabalhava nos campos, outros nas
minas das redondezas, onde o trabalho era muito mais penoso.
Corria
o ano de mil novecentos e quarenta, a vida de miséria, com salários muito
baixos, era uma constante daquela época difícil. Uma parte da população,
trabalhava nas minas, todavia, a maior parte trabalhava na agricultura, nas
herdades dos grandes senhores feudais
daquele tempo. Quer em terrenos cultivados de trigo, quer em terrenos de
regadio, uma parte dos homens e mulheres trabalhavam na cultura do arroz.
Naquele
ano fui parar ao Alentejo, devido à vida do
meu pai, que viera prestar serviço nos Caminhos de Ferro, na estação Alvalade-Sado. Aqui vivemos durante alguns anos, onde
decorreu a maior parte da minha saudosa infância. Meu pai, homem muito
conversador, bem depressa se habitou aquela gente tão simpática e hospitaleira.
Viera
do Algarve, onde havia uma certa semelhança, com aquelas lindas casinhas, todas
caiadas duma alvura sem igual. Costumes bem evidentes naquelas duas províncias
do sul. Aprendi a ler numa escola
particular, onde haviam apenas quatro ou
cinco crianças. Estas não frequentavam as escolas, porque muitas ajudavam os
pais, ou ficando em casa com os irmãos ou avó já velhota, ou a ajudar nos trabalhos do campo.
Deste
modo, pouca gente sabia ler. Hoje recordo com saudade algumas figuras típicas, como a Ti Mari Jóquina, mulher do Ti Zé Bucho, que
era um mulher irrequieta, trabalhadora e activa. Ah! Com que saudade daquele
tempo, das belas adiafas, que faziam no final das colheitas ou para celebrar
algum acontecimento. E as lindas
cantigas do povo alentejano que ficam no coração de quem os escuta que eram
ouvidas nesses momentos de confraternização, eram momentos que tornavam mais
amenas as horas difíceis, que minimizavam as amarguras dum trabalho árduo.
Destas
recordações do passado, importa reviver
alguns momentos que fazem parte do nosso património cultural, de recorte
anedótico e mais popular do nosso povo.
As
tabernas e as barbearias eram os locais de encontro e de convívio diário. Alise
reuniam, entre uns copitos e dois dedos de conversa, ou uma anedota mais
ousada, alguns amigos que eram sempre os habituais fregueses.
Como
eu recordo também o Ti Zé Simão, já velhote, com o seu cachimbo a fumegar, um
poeta popular que toda aldeia conhecia e que era sempre um grande animador das
melhores ocasiões. Surgiam cantigas ao desafio e muitas modas, ficaram na boca
do povo, não só feitas por ele, como de tantos outros, cujos nomes ficaram
ignorados.
Quando
ao som do bandolim do amigo Custóido se faziam ouvir as lindas quadras, quem
agarrava melhor a deixa? Por vezes, alguma mulher mais ousada, entrava na
taberna, para rebocar o marido que já estava com a “buída a mais no
buche”... e saltavam com a sua
trova muito bem atirada.
-
Eh! Rai do diabe! Já tás a preparar as goelas para a adiáfa da Ti Jóquina?
O
taberneiro enchia mais os copos, até entornar, já estava “lusco-fusco” e a Ti Chica não acendera ainda
os “candeeiros a pitrol”.
Algum
mais atento e observador, comentava:
-
Voceia já tá mai é a levar a gente à ruína... mai a mim não me leva voceia à
certa.
Daqui
a nada vem por aí a minha Jóquina, e ai Jesus! Tá o caldo entornado!
-
Eh! Compadre, não se deixe mandar por elas! Se le apetece beba, home!
-
Ti Sebastião, este é à minha saúde!
Vamos lá mais um copito!
O
Ti Zé Bucho, não resistia à tentação e ia bebendo sem querer...
O
Custodim tocava em surdina no bandolim as modinhas alentejanas, a seu lado o Manel
Longuiça, cantarolava e incitava os outros, atirava par
o ar uma quadra.
Tás
lindo Zé do Simão
Com
o guarda do teu condado
Na
taberna do Sabastião
A
tocar viola e cantar o fado!
O
guarda que não gostava da graça,
voltou-se para o Zé Simão, e diz-lhe:
- Então e a sua “reposta”!
-
Ah! Eu... é que dou resposta por ti! -
diz o poeta sorrindo.
-
Pois você é que é o poeta, fale você por mim que eu o guarde!
-
Ma tu és guarda ou anjo da guarda!? Bem vamos lá aos versos:
Tás lindo Amigo
Zé Bucho
Assim a matar o
bicho
Até “cagas de
repuxo”
A beber só por capricho!
-
Toma lá que é p’ra na pensares que aguentas mai buída! - disse o guarda todo
inchado quem nem um ”pirum” da herdade do João Vaidoso.
E
a conversa ia animando e exaltando alguns ânimos à fala. Só assim, caso
contrário, não se lhes arrancava a alguns,
uma palavra sequer.
-
Vens p’rá aqui com sede de vinhe ,
ó Chico das Dornas? Nem
uma pinga d’água
tinhas
lá no tê sito, que os eucalitros que ele
prantou lá chuparem toda a água do Rio Sado.... É ou não é verdade?- exclamava
o João do Monte, já meio desengonçado e os olhos em bico.
Entre
uma risada geral, ninguém respondeu.
A
Tia Chica, dona da taberna, ajudava o marido por vezes a “aviar” os fregueses e
mandava alguns embora (com quem tinha relações familiares chegadas) quando a
coisa estava tremida... Desta vez andava ela entretida a pôr a “scolatêra” de
barro para aquecer o café. Pôs uma toalha alva numa mesa que cheirava a
“barrela” , “prantou”
nela
um pão douradinho e quente, uma tigela com “zêtonas” e o “assucre” amarelo.
Começou
por servir o café que fumegava e perfumava o ar com o seu rico aroma...
-
Cheira que recende! Diz a Ti Chica. E dispunha os “bucros” de esmalte, nos quais ia deitando o líquido
bem quentinho, dizendo:
-
Vá lá... venham curtir a bebedeira! Amanhã não se levantam para a adiáfa da Tia
Maria Jóquina!
Na
verdade, a Tia Maria Joaquina, mulher previdente apareceu precisamente nesse
momento.
Olhou
em redor, observou o jeito do marido e imediatamente, dirigindo-se à comadre Chica.
-
Parece mentira Comadre Fracisca, a estas horas e não mandou o seu compadre Zé
Bucho para casa! A encher demais o bucho com este veneno da buída! Anda p’ra casa homem, com tanto trabalho e
amanhã a adiáfa, quero ver como a gente se safa!
No
meio da zanga, a Ti Chica, esqueceu-se de botar mais pitrol nocandeeiro e este
apagou-se.
Fez-se
uma escuridão que não deixava observar bem os rostos corados, pelos efeitos do álcool que nem o sol em
brasa fazia na monda. Apenas o lume chão
que crepitava na chaminé dava um pouco de claridade ao ambiente.
-
Procura aí os fófos p’ra acender o candeeiro, pediu a Ti Chica, aflita com a
torcida que caiu, após ter posto mais
pitrol no recipiente.
O
ambiente iluminou-se um pouco mais e a Tia Jóquina viu melhor quem eram os
compinchas do marido.
-
Pelo andar da carruáge, vi logo quem vinha dentro! Há bocado não enxergui, mas
agora estou a ver bem...
-
Era melhor que voceia não visse! E mostrou o copo vazio... continuando ... mai
voceia não é a irmã da Maria Machadinha?
Ao
ouvir a alcunha da irmã, Joaquina, não
gostou da graça e no seu jeito de versejar, respondeu:
Não há machado
que corte
O bico duma
arara...
Olha que tens
muita sorte
Não levarás nessa cara!
-
Vamos lá embora! Que já estás aqui a
mais!
-
Não se vá ainda Ti Mari Joquina! Diz o Ti
Zé Simão.
-
Gostei dessa, sim senhor!
Ó Jóquina
Feliciana
Deste bem o teu
recado
Que a mulher
alentejana
Sabe usar bem o machado!
Mas
a mulher não se ficava sem resposta, ou não fosse ela a Ti Maria Jóquina, de resposta sempre na boca.
Para
dar a machadada
Nunca a
força me faltou
A ser
mulher educada
A minha
mãe me ensinou!
E
dizendo a quadra, puxou energicamente
pelo casaco do marido e foi levando o homem, ainda meio tonto, para fora da
taberna.
Após a saída do casal, fez-se um breve
silêncio, que a seguir foi logo cortado pelo mais atrevido:
-
E esta hem! Elas é que mandam! Nem para jogar uma cartada, deixou o homem ficar!
-
Olha amigo, tu não és alentejano, porque se fosses, sabias que as nossas
mulheres, são cautelosas e acompanham sempre os homens nas suas tarefas. As
mulheres são sagradas como os filhos, o homem responsabiliza-se pelas suas
crias, até elas botarem corpo. Com a
terra a gente cava e pranta a semente, a gente monda e nace a
palha.
Nace a espiga e a gente cêfa. Tudo isto tem valor, como as nossas mulheres para nós, porque tanto a terra, como elas,
nos dão frutos do nosso amor.
-
Vamos lá, que aqui não morreu ninguém! Façamos uma viva à adiafa da Ti Maria
Joquina que vamos amanhã! E erguendo os copos ao alto:
- Viva a Tia Maria Jóquina! Viva
o vitelinho!
- Viva o vitelinho! Não! Morra o
vitelinho! Como é que a gente o come vivo?
- Abaixo o vitelinho da Ti
Jóquina!
......................................................................................
Começa a gritaria na taberna. O
bandolim do Zé Viola, faz ouvir-se com
mais intensidade, e, começam a preparar as modinhas alentejanas ao
fundo da taberna, junto da lareira que arde como os seus corações.
-
Mai será um vitelinho ou bezerro?
-
Com tanto pessoal, se for como o bezerro que comprei o ano passado na feira, mai duro nem um
chavelho. O vendedor havia garantido que o bezerro pesava vinte arrobas,
mas
no fim de contas, pesava apenas catorze
arrobas.
-
Pois fica sabendo que compraste
“gato por lebre”,
que não era
nadadisso, nem vitelinho, nem bezerro,
mas sim “bod...és” - disse o taberneiro gracejando.
E
assim ficaram, meio tagarelas, dando vivas à adiafa da Ti Maria Jóquina até que
a taberna fechou. A Ti Chica foi
obrigada a correr com eles...
-
Vamos lá que amanhã é outro dia. Têm de levantar-se ao romper da alva, para ir
ajudar à morte do vitelinho da ti Maria Joquina. E sabem que as crias
dela, são da melhor carne alentejana
destas redondezas, e os seus petiscos vão ser um primor...de comer e chorar por
mais!
Foi
uma recordação da minha passagem por terras alentejanas, onde permaneci durante
alguns anos da minha infância, que
passei aqui a recordar... esse Alentejo de sonho, de campos verdejantes de
paisagens deslumbrantes a perder-se no infinito, em bebedeiras de verde-azul!
Foi o rio Sado que um dia me contou esta história, tão
bela,
tão fascinante, duma parcela que restou
dentro do mer ser, em sonhos de água a escorrer pelos terrenos da alma que
ficou no coração do seu povo!
E
parafraseando o poeta direi:
Moram no meu coração
Amores que em sonhos vejo
Futuro e recordação
Como é lindo o Alentejo.